Dissipemos as inquietações. A Bíblia revela de forma inequívoca que Deus é o Criador do Universo e que tem todo o domínio sobre tudo o que existe. “Ao Senhor, o seu Deus, pertencem os céus e até os mais altos céus, a terra e tudo o que nela existe”. – Dt 10.14. “Tu, Senhor e Deus nosso, és digno de receber a glória, a honra, e o poder, porque criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas”. – Ap 4.11.
Não há dúvidas que as Escrituras revelam que Ele possui atributos que o diferenciam fundamentalmente da sua criação. Ele é onipresente: “Para onde poderia escapar do teu Espírito?” – Sl 139. “Os olhos do Senhor estão em toda parte, observando atentamente os maus e bons”. Pv 15.3. Ele é onisciente porque não há nada que esteja fora do olhar divino: “Revela coisas profundas e ocultas e o que jaz nas trevas, e a luz habita com ele”. – Dn 2.22. Deus é onipotente: “Eu sou o Senhor, o Deus de toda humanidade. Há alguma coisa difícil demais para mim?” – Jr 32.27. Aliás, em diversas ocasiões, Deus é chamado de Todo-Poderoso: “Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o que é, o que era e o que há de vir, o Todo Poderoso”. – Ap 1.8.
As Escrituras também mostram que em determinados momentos Deus exercita poder unilateral sobre a história, milagrosamente intervindo para mudar o curso das nações e, inclusive, predestinando alguns eventos muito antes que eles acontecessem: “Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que virá. Digo: o meu propósito permanecerá em pé e farei tudo o que me agrada”. Is 46.10.
Devido à sua onipotência, Deus não será frustrado em seu propósito de ter para si uma “noiva” (a igreja). Ele garante que, no futuro, o universo estará livre da maldade e que sua glória encherá a terra. Quem negar essas verdades, nega a fé.
Além dessas revelações clara e repetidamente enfatizadas por toda a Bíblia, estabelecemos, obedecendo a lógica, que Deus não pode desfazer-se de nenhum de seus atributos divinos. Deus não teve “escolha” no que é. Ele sempre teve a si mesmo e sempre foi o que é (Eu sou o que sou), porque nunca houve um tempo quando começou. Deus não pode deixar de ser onipotente, nem de ser onisciente, onipresente ou de ser infinito. - 2Tm 2.13.
A Bíblia também revela de forma inequívoca que Deus é amor. – 1João 4.8. Portanto, a forma como ele se relaciona com sua criação foi uma decisão soberana dele. – Sl 103.13. Ele não desejou relacionar-se conosco de outro modo senão através do amor; objetivou um relacionamento em que os humanos fossem considerados com uma dignidade impar. “Pergunto: o que é o homem para que com ele te importes? E o filho do homem para que com ele te preocupes? Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste de glória e de honra. Tu o fizeste dominar sobre as obras das tuas mãos; sob os seus pés tudo puseste”. Sl 8.4-6. Rebemos de Deus, inclusive, um mandato para construirmos nossa própria história.
Dotados com a capacidade de pensar, sentir e decidir, os seres humanos foram criados para desfrutarem a intimidade do Deus Trino.- (O Catecismo de Westminster diz que fomos criados para “gozá-lo” para sempre). “... receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos ‘Aba, Pai’. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus”. (Rm 8.15,16).
Assim, quando Deus criou seres humanos, dotados com a capacidade da razão, emoção, intuição, decisão e liberdade, Ele opta não agir como um déspota. O Deus bíblico não é parecido com deuses gregos e neoplatônicos do período Constantino e não lida com a humanidade como os reis medievais. Ed René Kivitz tratou dos parâmetros para que o amor se concretize em seu excelente “Vivendo com Propósitos” (Mundo Cristão, 2004):
“Nenhum relacionamento sobrevive sem a auto-imposição de limites, pois enquanto o eu for mais importante do que o relacionamento de amor, o relacionamento será utilizado para a satisfação do eu, portanto não será um relacionamento de amor. Comte-Sponville acredita que o amor divino (se é que Deus existe, diz ele) é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Absorve o pensamento de Simone Weil que diz que: ‘a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de sim, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou-se de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui em baixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras’. Em outras palavras, um Deus que não se esvazia é um Diabo. Deus não age como tirano e não força seu poder para cima de suas criaturas sob pena de esmagá-las, tirando-lhes todo o espaço de liberdade de que precisam para existir. Deus não invade. Não usurpa. Não manipula”.
Depois de acompanhar o pensamento de Kivitz, continuo citando Comte-Sponville:
"Assim como Deus, que se 'esvaziou de sua divindade', como escreve Simone Weil, e é o que torna o mundo possível e a fé suportável. 'O verdadeiro Deus é o Deus concebido como não comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo. É o amor verdadeiro, ou antes, (pois os outros também são verdadeiros), o que há de divino, às vezes, no amor. O amor consente tudo e só comanda os que consentem em ser comandados. O amor é abdicação. Deus é abdicação. O amor é fraco: Deus é fraco, embora onipotente, pois é amor... Cumpre dizer que Deus é fraco e pequeno, e sem cessar moribundo entre dois ladrões pela vontade da mais insignificante polícia. Sempre perseguido, esbofeteado, humilhado; sempre vencido; sempre renascendo no terceiro dia. Daí o que Alain chamava de jansenismo, o qual explicava ele, 'se refugia num Deus oculto, de puro amor, ou de pura generosidade, como dizia Descartes; num Deus que só tem a dar espírito, num Deus absolutamente fraco e absolutamente proscrito, e que não serve, mas que, ao contrário, deve ser servido, e cujo reinado não chegou...' O amor é contrário da força, assim é o espírito de Cristo, assim é o espírito do Calvário: 'se ainda me falam de Deus onipotente, insiste Alain, 'respondo que é um Deus pagão, um Deus superado. O novo Deus é fraco crucificado, humilhado... Não digam que o espírito triunfará, que terá potência e vitória, guardas e prisões, enfim a coroa de ouro. Não... É a coroa de espinhos que ele terá. Essa fraqueza de Deus, ou essa divindade da fraqueza é uma idéia que Spinoza nunca teria tido, ao que tudo indica, que Aristóteles nunca teria tido, e que, no entanto, fala à nossa fragilidade, ao nosso cansaço, e mesmo a essa força em nós parece-me tão leve, tão rara, o pouco de amor verdadeiramente desinteressado de que às vezes somos capazes, ou de que acreditamos ser, ou de que sentimos, pelo menos, a nostalgia ou a exigência."
Chego a alguns corolários a partir desses pensamentos:
1. Quando falo de um Deus que soberanamente escolhe o jeito como se relacionará conosco, não estou procurando redefinir o Deus da Bíblia e sim os conceitos a seu respeito, da teologia que se contaminou com a filosofia grega - principalmente com o neoplatonismo, depois da constantinização e de Agostinho. Na verdade, quero afirmar que a revelação bíblica sobre o Deus Pai de Jesus não combina com as deduções teológicas neoplatônicas.
2. O conceito bíblico da perfeição de Jeová e de Jesus não se assemelha com a perfeição dos deuses gregos. O Deus bíblico não é impassivo ou desprovido de emoções: Ele lamenta: “Ali, nas nações para onde vocês tiverem sido levado cativos, aqueles que escaparem, se lembrarão de mim; lembrarão como fui entristecido por seus corações adúlteros, que se desviaram de mim”. Ez 6.9.-; Ele se alegra: “O Senhor, o seu Deus, está em seu meio, poderoso para salvar. Ele se regozijará em você; com seu amor a renovará, ele se regozijará em você com brados de alegria”. – Sf 3.7; Ele sente ciúmes: “Eles o irritaram com altares idólatras; com seus ídolos lhe provocaram ciúmes”. – Sl 78.58; Ele escolhe: “À medida que se aproximaram dele, a pedra viva – rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus e preciosa para ele”. 1Pe 2.4; Ele é misericordioso: “Quem é comparável a ti, ó Deus, que perdoas o pecado e esqueces a transgressão do remanescente da sua herança? Tu, que não permaneces irado para sempre, mas tens prazer em mostrar amor”. Mq 7.18.
3. Os gregos não concebiam a possibilidade de Deus mudar. Segundo eles, Deus não pode mudar por ser perfeito. Ora, a misericórdia só é possível de ser exercida se houver mudança no coração de quem a exerce. Aliás, misericórdia não exige mudança de quem é alvo dela e sim de quem a pratica. Há inúmeros exemplos bíblicos de que Deus mudou o que faria e tomou medidas até emergenciais, devido as ações humanas.
4. Devemos tomar o máximo cuidado para não tentarmos sustentar a visão neoplatônica de Deus, nos valendo do argumento antropomórfico quando lidamos com o seu caráter. Se afirmarmos que aquilo que a Bíblia fala sobre o caráter divino for um antropomorfismo, jogamos dúvida, inclusive, sobre o seu amor. Ficaríamos nos questionando: “Será que ele ama mesmo ou será que a revelação do amor é um mero antropomorfismo?”.
Deus soberanamente escolheu relacionar-se conosco, nos tratando com uma honra exclusiva. Para viabilizar esse relacionamento, Ele nos dá espaço e respeita nossos arbítrios. Concordo com Henri Nouwen, quando ele afirma que a encarnação sinaliza o desejo de Jeová de concretizar plenamente o propósito relacional: “Jesus é Deus conosco, Emanuel. O grande mistério de Deus ao se tornar humano é seu desejo de ser amado por nós. Ao se tornar uma criança vulnerável, completamente dependente de cuidado humano, Ele quer eliminar toda a distância entre o humano e o divino. Quem pode ter medo de uma pequena criança que precisa ser alimentada, cuidada, ensinada e guiada? Normalmente falamos de Deus como o Deus onipotente, Todo-Poderoso, de quem dependemos totalmente. Mas Ele quis se tornar o Deus não-onipotente, todo-vulnerável, que depende completamente de nós. Como podemos ter medo de um Deus que deseja ser "Deus conosco" e que nos tornemos ’Nós-com-Deus’?
C. S. Lewis escreveu assim em “Cristianismo Puro e Simples” – (ABU, p. 26):
"Os cristãos acreditam, então, que um poder do mal tornou-se por ora o Príncipe deste mundo. Isto suscita problemas, naturalmente. Será que este estado de coisas está de acordo como a vontade de Deus, ou não? Se está, podemos dizer que Ele é um Deus muito estranho; se não, como pode acontecer algo contra a vontade de um ser que tem poder absoluto?
Contudo, todo aquele já exerceu autoridade sabe que uma coisa pode estar de acordo com a sua vontade num certo sentido, e não estar em outro. Achamos que é muito sensato que uma mãe diga a seus filhos: "Não vou ficar vigiando e obrigando que arrumem o seu quarto todas as noites. Vocês devem aprender por si mesmos a deixá-los arrumado". Uma noite ela vai lá e vê o ursinho, as tintas e o livro de francês no chão. Isso é contra a sua vontade. Ela preferia que as crianças fossem ordeiras. Mas, por outro lado, foi por sua vontade que as crianças ficaram com liberdade para serem desordeiras.
O mesmo acontece em qualquer regimento, sindicato ou escola. Basta que uma coisa se torne voluntária para que a metade das pessoas não a faça. Assim, acontece de forma contrária à vontade de alguém; mas essa mesma vontade foi que permitiu que isso acontecesse. É provável que o mesmo tenha ocorrido no universo. Deus criou seres com o livre-arbítrio. Isso quer dizer que as criaturas podem agir bem ou mal. Alguns julgam que podem imaginar uma criatura que fosse livre, mas que não tivesse possibilidade de agir mal; eu não posso. Se uma coisa é livre para ser boa, também é livre para ser má. E o livre arbítrio foi o que tornou possível o mal.
Por que Deus deu então o livre arbítrio? Porque o livre-arbítrio, apesar de tornar o mal possível, é também a única coisa que faz com que todo amor, bondade e alegria valham a pena (o grifo é meu). Um mundo de autômatos, de criaturas que trabalhassem como máquinas, não valeria a pena ser criado. A felicidade que Deus destinou a suas criaturas superiores é a felicidade de serem livres e voluntariamente unidas com Ele e entre si mesmas, num êxtase de amor e prazer comparado com o qual o amor mais arrebatador neste mundo, entre um homem e uma mulher, não passa de uma coisa insípida. Mas para que isso aconteça, as criaturas têm que se livres".
Quero levar esses pensamentos de C. S. Lewis às últimas conseqüências:
1. Deus essencialmente nos criou para relacionamento. Ele, trindade perfeita, é eternamente relacional. Um dos principais atributos do amor é liberdade. Os relacionamentos só podem acontecer com liberdade real. Sem liberdade, qualquer relacionamento ou é coercitivo e, portanto, desprovido de qualquer valor, ou não existe.
2. Quando Deus nos criou, ele não podia gerar seres mais perfeitos do que ele, pois assim criaria deuses mais deuses do que Ele próprio. Não poderia formar um ser igual a si, pois assim criaria um par – Deus, por definição, é incriado. Ele nos formou seres menos perfeitos – somos finitos, mortais, limitados. Entretanto, possuímos capacidade de escolhas e com a real possibilidade de praticarmos o mal – por esse motivo o Cordeiro intencionalmente foi crucificado antes da fundação do mundo: a salvação precede à criação. Conhecendo o risco, Deus providenciou a cura.
3. Se Deus se dispunha criar seres livres, com a real possibilidade de praticarem o mal, ele estava autolimitando sua Soberania. Por que? Simplesmente porque agora conviveria com parceiros capazes de fazer novas escolhas. Mas essa decisão em nada diminui sua Soberania, porque foi uma decisão soberana sua.
4. Se nossas escolhas são reais e não um jogo manipulativo em que cumprimos um roteiro previamente escrito, podemos sim, optar por caminhos que frustrem ou sejam contrários à vontade divina. A Bíblia está repleta de exemplos em que as opções humanas contrariaram as expectativas, projetos ou desejos divinos. Por que quarenta anos perambulando no deserto? Por que escolher o fracassado Saul? O homicídio de Davi constava no roteiro? Por que os lamentos proféticos? O traficante que vende morte cumpre a vontade de Deus? A miséria que dizima milhões todos os anos, com certeza não cumpre nenhum propósito divino, mas é um sinal da queda e da rebelião humana. Os pedófilos e os estupradores não estão a serviço de Deus, mas a contrariar sua vontade.
5. Um projeto relacional implica em respeitar as decisões, inclusive as rebeldes. Não se impor por força, coerção, ou manipulação não sinaliza fraqueza, mas grandeza. Por esse motivo o Senhor exaltou a Cristo; ele sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Quem tem todo o poder e não se vale dele para ganhar o amor do próximo, não é um fraco e sim uma pessoa magnífica. Quando afirmamos que Deus abriu mão de controlar (ou micro gerenciar), não estamos subtraindo a grandeza de Deus e sim enaltecendo. Lavar os pés dos discípulos (inclusive de Judas) não é menos digno do que querer forçar uma nação a se ajoelhar aos seus pés, como tentou Nabucodonosor com sua imensa estátua.
6. A verdade mais linda do evangelho não é só que Jesus se parece com Deus, mas que Deus é exatamente igual a Jesus - nele habitou toda a plenitude divina. Então, quando contemplamos a fragilidade relacional de Jesus, isso não significa um antropormofismo, mas um teomorfismo. Jesus disse a Felipe, “quem vê a mim, vê o Pai”. Jesus foi totalmente humano e totalmente Deus – “Vero Homo e vero Deus”. Entendo que há dimensões da humanidade de Jesus que não podemos projetar no Pai. Quais? Sua limitação física, seu cansaço, sua fome de alimento, sua sede. Contudo, se observamos a humanidade de Jesus chorando sobre Jerusalém e dissermos que Deus é exatamente assim, não diminuímos em nada o Pai, mas o engrandecemos. Quando o contemplamos, abraçando as criancinhas, nele se encarna o amor do Pai. A fragilidade relacional de Jesus, de não querer seguidores por coerção ou suborno, estou convencido, é exatamente igual à de Jeová – igualmente expressas na Parábola do Filho Pródigo, quando coloca a cadeira na varanda e aguarda que o filho caia em si, no Cântico do Amado de Isaías 5 e em tantas outras passagens bíblicas que revelam o coração paterno de Deus.
Ricardo Gondim
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