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domingo, 19 de setembro de 2010

SENHOR, OBRIGADO PELO HEREGE!

Minha admiração pelos hereges é indisfarçável. Eles mexem com os meus desejos mais escondidos. São capazes de me sensibilizar mais que quaisquer outros. Falam a minha alma. Adrenalizam meus pensamentos. Suas déias desconcertantes é que me fazem continuar vivo.

Eu confesso, preciso de suas heresias como da endorfina espalhada pelo meu corpo ao fim de cada corrida. Como um prazer vital. A estética da alma. A cada exercício fico suado e mais feliz. A cada heresia, desestabilizado e mais humano.

Mas antes que minha declaração de amor e gratidão aos hereges seja confundida com um delírio, preciso expor meus motivos e compreensões. Estou certo de que ganharei sua companhia em meus afetos.

Heresia é uma escolha e essa é a sua gravidade. A conceituação não é aleatória. A palavra grega para a ‘heresia’ que conhecemos é /haíresis/, seu significado literal é ‘escolha’. Heresia é como chamamos algo que não deveria ser escolhido como algo a dizer. Herege é o que faz a escolha que, mesmo podendo ser feita, não deveria.

Mas heresia nunca é um nome que quem nela incorre se dá. É uma palavra que apenas se encontra na boca de quem se sente contrariado, nunca na boca de quem contraria. Herege não é como quer se sentir quem discorda de um pensamento.

Herege é como quem sofre a oposição de idéias precisa que se sinta quem ousa fazê-lo. Porque a escolha feita por quem sofre a sentença de que é um herege é a escolha de não se submeter à hegemonia representada por quem pode assim sentenciar. Portanto, heresia não é uma questão sobre a verdade das coisas. Mas sobre quem manda de verdade.

Rubem Alves fala dos fortes e dos fracos como uma relação marcada pela heresia. “A heresia é a voz dos fracos. Do ponto de vista dos sacerdotes, os profetas sempre foram hereges. Do ponto de vista dos fariseus e escribas, Jesus foi também herege. E, como as Escrituras sistematicamente se situam ao lado dos fracos contra os fortes, é melhor dar mais atenção às heresias do que às ortodoxias.

É preciso situar a heresia, portanto, nas relações de poder. Quem levanta a suspeita de heresia não é quem está ingenuamente interessado na verdade, mas quem precisa se livrar de alguém que ameaça sua condição de dono da razão. O herege assalta o que se sente no direito de ter a última palavra.

Quem se sente com a última palavra é aquele que pratica o poder mais que o pensamento. Quem pratica o poder busca sempre se afirmar em detrimento do outro, do diferente. É preciso esvaziar de valor aquele que ameaça sua condição de superioridade.

Declarar que alguém é um herege é bem mais que dizer que ele discorda de suas idéias. Mas é fazer convergir sobre ele toda a violência acumulada em uma sociedade por seus medos, culpas, inadequações, acidentes, injustiças, frustrações. O herege é como o “bode expiatório” de René Girard. Alguém sobre quem incide a violência de todos em um acordo social silencioso, em uma compensação inconsciente.

Como aconteceu na tradição cristã com a personagem Judas Escariotes, aquele que traiu. Todos vacilaram e negaram fidelidade a Jesus, mas apenas Judas encarnou, no imaginário coletivo, o mal da humanidade. Como as bruxas na Idade Média, responsabilizadas por todas as desventuras de uma sociedade, eliminá-las era livrar-se do próprio mal humano.

Com o herege parece ser repetida a mesma mística coletiva e
inconsciente. Ele é o culpado pela instabilidade da vida. Declará-lo
herege é eliminá-lo de sua influência no destino de uma comunidade, como quem se livra do próprio mal da humanidade. Em uma sociedade ocidental do século XXI a fogueira tornou-se simbólica, mas não menos violenta. Destruído em sua integridade, o herege tem sua humanidade apagada. Suas palavras são pulverizadas e perdem o poder legítimo de interação.

Alguém sob a suspeita de heresia é sempre ouvido por todos com pedras nas mãos. Como nas cenas freqüentes dos evangelhos, quando os religiosos acusavam Jesus de blasfemar contra Deus ao se afirmar como um ser que sua religião não concebia: Filho de Deus. Em suas mãos, registra bem o detalhe quem narra, já estavam as pedras preparadas para serem desferidas em punição contra o blasfemo. O herege é alguém cujas idéias são ouvidas com as pedras nas mãos.

Há quatro palavras que precisam se associar para uma melhor compreensão do fenômeno herege. Instituição, ortodoxia, contingência e heresia.A instituição é via de mão única para um ser finito não entrar em inércia. Ninguém segue em frente em nenhum projeto ou relação sem institucionalizar.

Ninguém precisa parar e organizar friamente uma instituição para que ela surja. Basta seguir em frente no desenvolvimento natural de qualquer projeto ou relação.

Porque instituir é estabelecer a memória de uma viagem feita em comum com outros viajantes. Esta memória é constituída pelos hábitos, critérios, compromissos, regras, objetivos e teorias confeccionados ao longo do caminho. Eles são o mapa do caminho que já se fez e o que ainda precisa ser feito.

Sem esses valores nos transformamos em Sísifos, cujos trabalhos nunca se concluem. Sísifo foi o deus da mitologia grega conhecido por sua esperteza.

Por várias vezes conseguiu enganar /Tanatos /e /Hades/, deuses da morte e dos mortos. Ao morrer de velhice, Sísifo foi condenado a rolar montanha acima uma pedra de mármore. Cada vez que se aproximava do topo a pedra rolava montanha abaixo de novo com uma força insuperável, obrigando a começar de novo sem nunca terminar a tarefa.

Uma instituição é assim. Uma igreja, para falar mais de perto, precisa de uma programação a ser cumprida como uma agenda sagrada. São seus cultos. De uma linguagem que expresse suas crenças nos cultos. É a sua liturgia. De um conteúdo que responda aos seus questionamentos. É a sua pregação. De idéias que solidifiquem sua fé.

São seus dogmas. De pessoas que zelem por seus valores. É a sua hierarquia. É a memória que se cria ao longo de um caminho de fé compartilhado. Esta memória é que dará condição de sustentar um projeto com o passar do tempo, conquistando a confiança daqueles que a ele aderem e que anseiam por estabilidade. Esta adesão em busca de estabilidade é que autoriza a instituição.

A autoridade de uma instituição é o modo como é mistificada. A
instituição, seja ela casamento, igreja, estado, partido político,
agremiação, clube, faz o discurso, sempre e necessariamente, convincente de que é a resposta mais confiável para satisfazer determinadas necessidades ou aspirações. É a resposta persuasiva de que veio para ficar de tão pertinente.

O que a torna, então, um valor que precisa ser religiosamente perpetuado, com o risco de se desperdiçar algo essencial para a vida. Não demoram tanto, muitos estarão persuadidos sobre sua hegemonia: ela é a melhor resposta.

Sua perpetuidade: parece que sempre foi assim e, portanto, não deve ser de outro jeito. Sua heteronomia (uma regra que vem de outro): um deus a determinou, logo, é sagrada. Sua intocabilidade: opor-se a ela é quebrar um ciclo sagrado e, por isso, provocar a ira dos deuses, ou de Deus.

Mas curiosamente, a força que a torna necessária, a princípio, é a mesma que a fará questionável, depois. A contingência. Essa é a dinâmica da vida, sua “irresistível leveza de ser”, como no romance de Milan Kundera. A vida é fluida demais para ser emoldurada por uma instituição. O que hoje é, amanhã não mais será. Lulu Santos e Nelson Mota compuseram uma das mais belas canções que conheço: “Como uma onda no mar”, nela os poetas retratam a fluidez da vida. Uma de suas estrofes diz: “Tudo o que se vê não é/ Igual ao que a gente viu a um segundo/ Tudo muda o tempo todo no mundo/ Não adianta fugir/ nem mentir pra si mesmo agora/ Há tanta vida lá fora/ Aqui dentro sempre/ Como uma onda no mar!”

A vida não se repete. É inédita, imprevisível e incontrolável. As necessidades que geraram determinada instituição e suas respostas ou deixam de existir ou mudam.

Tornam-se mais complexas ou sem importância diante das outras e novas necessidades. Se mudam as necessidades, ou se deixam de
existir para existirem outras, mudam também as perguntas ou novas questões se impõem. É nessa dinâmica que surgem os hereges, “como uma onda no mar”. Como aqueles que ousam sugerir as novas respostas para as perguntas que ninguém quer ouvir. Quebram o encanto da estabilidade falando do que não estava previsto ou do que não era plausível dentro das teorias da instituição.

O herege é um desritmado. Todos dançam na mística do que está
instituído, em seu único ritmo. O herege por razões várias sai do ritmo. Viveu uma crise, divagou em um insight, sentiu-se entediado e insatisfeito, intuiu variações possíveis.

Qualquer ou quaisquer coisas que quebrem a seqüência e a unanimidade podem fazê-lo perceber o diferente. Ao sair do ritmo descobre uma nova possibilidade de dançar no mesmo salão. Descobre o improviso e o contratempo. Percebe que é possível, faz sentido e é bom ser diferente.

Thomas Kuhn chama o fenômeno que inicia a quebra de um paradigma de anomalia, um fator não explicado satisfatoriamente pela Ciência Normal. Até que um cientista, desprovido de muitas explicações, movido mais por intuição que por certeza, arrisca uma outra e heterodoxa explicação.

Logo terá em torno de si outros cientistas que também trabalharão com o candidato a novo paradigma até que ele venha a se tornar a Ciência Normal. O herege é como o cientista que, diante do acúmulo de perguntas não respondidas, destoa arriscadamente do modo como se vinha fazendo e explicando as coisas.

Mas há ainda outra palavra a ser associada para a compreensão do
fenômeno herege, a ortodoxia. Ela é o discurso a serviço da instituição.

Tem o seu bom valor em seu tempo real. Em determinadas condições aquelas respostas eram boas o bastante para serem levadas a sério e às últimas conseqüências. Ninguém constrói uma crença sem acreditar que ela faz sentido, que precisa ser ampliada e deve ganhar a coerência interna de seus argumentos.

Tanto quanto é relevante o bastante para ser objeto de persuasão do maior número de pessoas. Mas o grande problema da ortodoxia não é ela mesma e sim os ortodoxos.

Os ortodoxos são aqueles que atrelam ao discurso da ortodoxia seus valores pessoais. Um discurso feito sempre se confunde com o valor próprio de quem o publica. Quem doutrina sente a necessidade de perpetuar o pensamento ora defendido como quem salva a própria pele. São os ortodoxos que por auto-afirmação precisam sustentar a hegemonia de um pensamento: uma ortodoxia.

A perpetuação de uma doutrina a todo custo é sempre auto-perpetuação. Os estudiosos da psicologia interativa tratam da relação da fala com as paixões ideológicas. Uma vez que alguém se pronuncie a favor de determinada posição tende a associá-la a seu valor pessoal e, em defesa deste valor, lutar incansavelmente. Por isso o engajamento e a passionalidade. Certamente é por essa razão que quando alguém discorda de uma ortodoxia sofre uma reação tão violenta dos ortodoxos. Porque feriu sua própria carne.

Sem os ortodoxos a ortodoxia seguiria seu curso finito e natural: a
morte. Mas como a morte de uma ortodoxia é o fim dos valores de um ortodoxo e de sua auto-perpetuação, é preciso impedi-la como quem luta contra a própria morte.

Com o desenvolvimento das novas tecnologias na medicina, passamos a conviver com mais uma difícil ambigüidade. Algumas pessoas, ao fim anunciado de suas vidas, que já deram sinais de extrema debilidade física e, às vezes, de morte ‘existencial’, porque já não mais respondem às conversas, nem demonstram qualquer afetação emocional, mas estão tecnicamente vivas, sobrevivem mecanicamente.

São assim mantidas pelo enorme recurso tecnológico da ciência médica, com os antibióticos cada vez mais potentes, os aparelhos que substituem o funcionamento de órgãos vitais e o monitoramento fino que rastreia qualquer aproximação da morte. É a morte adiada. A complexidade está em definir até que ponto se pode manter um corpo vivo artificialmente sem o comprometimento ético da vida.

Afinal de contas somos seres finitos e a morte é o destino natural de todos. Fico sempre com a sensação de que se macula a dignidade de quem precisa se despedir com naturalidade da vida, mas é tecnicamente impedido.

Decidir por não usar recursos que vão apenas adiar a morte e protelar uma vida vegetativa, já tão bem anunciada, é muito difícil. Mas pode ser uma alternativa mais digna e, por que não, mais reverente à vida. Sei que o assunto é mais complexo do que minha intenção de que apenas sirva como ilustração.

A ortodoxia parece seguir a mesma terrível ambigüidade. Já não responde mais ao seu tempo como outrora. Tem aporias diversas em seu interior que comprometem sua pertinência. Não se comunica mais com as pessoas ao seu redor. Mas é mantida viva pela mística da instituição e o monitoramento zeloso dos ortodoxos.
A ortodoxia morre existencialmente, asfixia quem a ela está sujeito, combate com altas doses de apologia seus oponentes, mantém com culpa muitos ao redor de si e impede que a vida prossiga com a fluidez que a torna tão surpreendente e bela.

A heresia é a reverência à vida quando se escolhe não adiar a morte de uma ortodoxia. São as línguas confundidas do mito da Torre de Babel na Bíblia. Desaba a torre com suas pretensões de poder eterno, mas a vida se espalha sobre a terra em sua rica diversidade.
A confusão da linguagem libertou a humanidade da escravidão da ortodoxia. E no mito babélico, Deus é o grande herege: /“Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros. (...)Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou sobre toda a face da terra.

Mas não foi a primeira e a única vez que Deus agiu hereticamente ou se colocou ao lado dos hereges. A história dos profetas confirma a sacralidade das heresias. Chama à atenção a profecia de Jeremias.

Enquanto grassa entre o povo a idéia otimista de que tudo estava bem e que o futuro seria de paz e prosperidade, Jeremias contrapõe. Denuncia as ruínas da nação dos judeus e anuncia a tragédia que bate a porta.

Todos se revoltam, alguém feriu a ortodoxia de uma ilusão. O profeta herege é lançado ao calabouço para que a sua voz não fale o que todos não aceitam que se diga. Somente depois, tudo o que o profeta-herege vaticinou fez sentido na mente de todos. Sem sua heresia, sequer haveria lucidez e aprendizado no meio da destruição da nação. Mas essa história é a história freqüente dos profetas, razão porque Deus se queixou do modo como o povo perseguia os profetas.

Mas a maior e redentora heresia de todos os tempos foi a encarnação de Deus. Deus feito gente, Cristo Jesus. Sua relação com a ortodoxia de então foi de profunda tensão: /“ele veio para o que era seu e os seus não o receberam. Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que crêem em seu nome.”

Jesus não foi o que a ortodoxia de sua religião e cultura determinava que fosse, uma reafirmação sobrenatural e violenta do judaísmo frente ao poder ultrajante dos romanos. Ele foi uma negação pacífica e radicalmente humana da pretensão sempre perversa de qualquer tipo de dominação sobre quem quer seja.

Não foi pela prática da força que Jesus anunciou a chegada do Reino de Deus. Ele escolheu praticar a fraqueza em uma cultura de forças, o amor que amadurece contra o poder que infantiliza. Acolheu a humilhação em uma disputa cujas armas eram a imponência e a ovação popular. Espalhava quando todos queriam aderir. Escondia-se quando todos reivindicavam visibilidade. Pedia silêncio quando os resultados serviam a mais poderosa propaganda.
Questionava e afligia as mentes quando muitos pressionavam pelas respostas simplistas e conclusivas. Era agressivo quando o mais politicamente estratégico era a polidez. Era Jesus quando todos esperavam um outro Cristo.

Jesus foi o vinho novo que reivindicou um novo odre, ou um tecido novo em negação aos remendos que apenas adiavam o fim de uma cultura e espiritualidade esgarçadas por suas contradições.

A cruz era a mão mais pesada do poder dominante. A mão forte do Império que só se justificava contra a mais terrível ameaça. Tanta força e violência convergindo sobre alguém tão frágil e suscetível – / "como uma ovelha muda que vai para o matadouro”, que não desejou os tronos instituídos de Roma ou dos judeus, tiveram ação reversa.

Refluíram contra os próprios autores, contra os poderosos de Roma e dos Judeus, como uma exibição de sua mesquinhez e tolice. A morte de Jesus foi a vitória da vida contra as forças mórbidas da ortodoxia. O Cristo morto desmascarou o perverso e tolo poder das instituições e ortodoxias sobre a vida e libertou a humanidade de sua tirania. O que parecia um poder inquestionável tornou-se um poder idiotizado.

A ressurreição de Jesus é muito mais que a vingança de Deus contra o mal. A ressurreição é insurreição. É Deus se insurgindo ao nosso lado contra toda e qualquer forma de sentença final sobre a vida humana.

Jesus ressuscitando é Deus se insurgindo a favor da vida. Contra todas as forças que pretendem congelar a vida para perpetuar poderosos. A ressurreição é a heresia de Deus contra a ortodoxia da morte.

Por isso, Senhor, obrigado pela heresia.

( Elienai Cabral Junior )

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