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sábado, 25 de dezembro de 2010

Reflexões Sobre a Intolerância

Por gentil pereira


A vida de uma mãe de quatro filhos está por um fio. A cristã Asia Bibi, de 45 anos, é a mais recente vítima da abominável lei da blasfêmia que se converteu na mais draconiana do mundo islâmico, ao castigar com pena de morte insultos contra Maomé. Qualquer denúncia de blasfêmia significa prisão imediata até a data do julgamento, que no caso de Asia Bibi demorou um ano e meio. Ainda que qualquer paquistanês seja suscetível de ser perseguido, até agora 50% das denúncias recaíram em minorias religiosas (4% da população). Em primeiro lugar, os ahmadis (uma seita que o Paquistão não reconhece como islâmica), seguidos muito de perto pelos cristãos.

Os problemas de Asia Bibi começaram com uma rixa entre trabalhadoras. Bibi havia sido encarregada pelo capataz de transportar água, mas as outras se negaram a beber porque ela é cristã. Elas discutiram. Alguns dias depois voltaram, como matilhas, dizendo que ela havia ofendido o profeta. “É uma armação total, uma vingança, como sempre”, afirma Pilar Vila-Sanjuán, uma freira de Barcelona. “Mas aqui, para muita gente, as heroínas são as outras.” Ou seja, as muçulmanas que querem levá-la à forca.

Vila-Sanjuán dirige o colégio Jesus & Mary, rodeado de cercas, como o restante das escolas de elite de Lahore. Depois de uma dezena de anos no Paquistão, ela não morde a língua: “Os presos cristãos são os escravos dos muçulmanos e sempre são eles que limpam as latrinas.” E completa: “Desde o 11 de Setembro há mais intolerância, o cristão vive assustado e sonha em ir embora.” Os cristãos no Paquistão, um pouco mais de 3 milhões, são pobres. E entre os cristãos, “os católicos são os mais simples”. Varredor de rua é uma das profissões habituais. 

A própria freira afirma que sofreu na carne as acusações de blasfêmia. Quando acompanhou um paroquiano que ia assinar o contrato de aluguel de um apartamento, “o proprietário ficou de pé atrás ao ver que era cristão”, explicou. Vila-Sanjuán recriminou sua conduta e uma hora depois a polícia chegou “porque ela havia humilhado um muçulmano”.

Na sexta-feira, um clérigo muçulmano prometeu o equivalente a 4.300 euros a quem matar Asia Bibi, caso o governo não a execute. “Na saída das mesquitas, em Lahore e Karachi, havia gritos contra os cristãos”, lamenta Pilar Vila-Sanjuán. Duas semanas atrás, o cardeal Tauran – enviado pelo Vaticano para tratar com o presidente Ali Zardari – se reuniu com todos os bispos. O caso de Asia Bibi estava na agenda. Uma semana antes, o papa havia pedido sua libertação. 

O ministro de Minorias solicitou seu indulto. Mas o Tribunal Supremo advertiu que não pode dá-lo enquanto não avaliarem o recurso. “Se a indultarem, terá de tirar sua família do país, para que não os matem. Até o juiz tem medo”, opina a religiosa. Os partidos islâmicos já se organizaram para exigir o enforcamento de Asia e alertam que revogar a lei “levará à anarquia”.

Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/paquistao-condena-crista-a-morte-por-blasfemia



Historicamente, a intolerância está presente na esfera das relações humanas fundadas em sentimentos e crenças religiosas. É uma prática que se autojustifica em nome de Deus; adquire o status de uma guerra de deuses encarnados em homens e mulheres que se odeiam e não se suportam. Heinrich Mann (1993:11), em A Juventude do Rei Henrique IV, fornece uma descrição que nos permite visualizar os efeitos da intolerância religiosa:

“Mas no país inteiro também se incendiava e matava em nome das crenças inimigas. A diferença das crenças religiosas era levada profundamente a sério, e transformava as pessoas que normalmente nada separava em inimigos extremados. Algumas palavras, especialmente a palavra missa, tinham efeito tão terrível que um irmão tornava-se incompreensível e de sangue estranho para outro”.[1]

José Saramago (2001) denominou este ódio recíproco fundado em valores religiosos como “O Fator Deus”:

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”.

A história das grandes religiões monoteístas – o cristianismo, islamismo e o judaísmo – indica momentos de convivência respeitosa, mas também períodos de intolerância entre as diversas religiões e a intra-religião.[2] Os diversos fundamentalismos, cristão, judaico e islâmico, comprovam-no. O fundamentalismo se caracteriza pela resistência aos processos de modernização das sociedades, em todas as épocas. Os primeiros a utilizar este termo foram os protestantes americanos, os quais passaram a se autodenominar “fundamentalistas” com o objetivo de se diferenciarem do protestantismo considerado “liberal”. Para os “fundamentalistas” os protestantes liberais “distorciam inteiramente a fé cristã. Eles queriam voltar às raízes e ressaltar o “fundamental” da tradição cristã, que identificavam como a interpretação literal das Escrituras e aceitação de certas doutrinas básicas”. (ARMSTRONG, 2001: 10)

Na Idade Média, a intolerância religiosa se intensificou contra os judeus e os heréticos em geral. “Os inquisidores caçavam dissidentes e os obrigavam a abjurar sua “heresia”, palavra que em grego significa “escolha”, escreve Armstrong. (Id.: 24) A Inquisição na Espanha oprimiu os judeus, forçou-os à conversão ao cristianismo e, finalmente, expulsou-os da península. Esta se tornaria uma prática comum em outras épocas e outras nações. Com a identificação entre religião e política, entre as diferentes facções do cristianismo (católicos, protestantes, anglicanos etc.) e os respectivos governos representativos dos Estados-Nações, a perseguição aos dissidentes é intensificada e também motivada pelos interesses políticos em disputa. A inquisição espanhola, por exemplo, foi usada para “forjar a unidade nacional”. Mas a utilização deste recurso não se restringiu ao catolicismo romano. Como relata Armstrong: “Em países como a Inglaterra seus colegas protestantes também foram implacáveis com os “dissidentes” católicos, tidos igualmente como inimigos do Estado”. (Id.)

Com a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos, a intolerância vincula religião e política, identificando uma à outra. O herege religioso é visto como um desafiante da ordem política monárquica; o dissidente político é encarado como um desafiador do dogma religioso adotado pelo Estado-nação. Dessa forma,

“a intolerância religiosa assumiu formas especialmente virulentas, porque se julgava que a solidez do poder absoluto do rei dependia da aplicação do princípio de que a religião do povo deveria ser a religião do príncipe. Desencadeadas por um massacre de protestantes ocorrido em 1562, as guerras de religião da França se caracterizaram por atrocidades sem precedentes, como a matança de São Bartolomeu (25 de agosto de 1572), e só terminaram mais de 20 anos depois, quando Henrique 4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aos protestantes (1598). Mas a longa história da perseguição à religião reformada ainda não havia terminado, pois em 1685 Luís 14 revogou o Edito de Nantes, o que levou à demolição dos templos, à proibição das assembléias e à emigração forçada de cerca de 300 mil protestantes. Mas estes eram tão intolerantes quanto os católicos”. (ROUANET, 2003)

A política terminaria por impor a sua autonomia em relação ao poder religioso. Então, a intolerância tomou a forma de lutas ideológicas. Maquiavel já anunciara este caminho quando, ainda no renascimento, advogou que os fins justificam os meios, em outras palavras, que a razão do Estado deve se impor a despeito dos meios utilizados. Nestas condições, o problema para Maquiavel não está em usar a violência, mas em saber usá-la, na intensidade certa e no momento oportuno. Em defesa do florentino, observemos que trata-se da construção do Estado e das necessidade deste expressar a autoridade soberana e absoluta. Thomas Hobbes retoma este tema no século XVII, com a defesa de um Estado absolutista, o Leviatã, ao qual submetemos a nossa liberdade. As liberdades dos súditos ficariam restritas aos interstícios onde o soberano não alcança, no mais ele é absoluto. Estes autores expressam a idéia de que o poder político não deve admitir concorrentes, ou seja, o poder político deve ser autônomo em relação ao poder religioso.

Mas a violência e a opressão, observou Baruch Spinoza, não podem promover a fé. Judeu, vítima da intolerância por parte da sua própria comunidade, ele foi acusado de ateísmo e excomungado pelos rabinos. Spinoza passou a viver à margem da religião judaica estabelecida. Sua atitude contribuiu e é referência para os judeus secularistas, isto é, aqueles que sem negar o judaísmo abdicaram do abrigo da religião. A sua excomunhão expõe um dos principais problemas relacionado à intolerância: a necessidade da liberdade de expressão.

John Locke, no mesmo século de Spinoza, na Carta Acerca da Tolerância defende que a autoridade política não pode se arvorar a função de definir a crença dos indivíduos. Por maior que seja a sua capacidade repressiva, a autoridade política é incapaz de impor plenamente uma crença religiosa – esta só tem valor se é livremente aceita. John Locke conclui pela imperiosa necessidade de distinguir os âmbitos da autoridade política e religiosa, isto é, de definir claramente os papéis do Estado e da Igreja. Para Locke (1978: 05-06)

“... não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem tampouco a quaisquer outros homens. Isto não lhe foi outorgado por Deus; porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religião. Nem tal poder deve ser revestido no magistrado pelos homens, porque até agora nenhum homem menosprezou o zelo de sua salvação eterna a fim de abraçar em seu coração o culto ou fé prescritos por outrem, príncipe ou súdito. Mesmo se alguém quisesse, não poderia jamais crer por imposição de outrem. (...)

Em segundo lugar, o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder consiste totalmente em coerção. Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito, sem o que nada tem qualquer valor para Deus, pois é a natureza do entendimento humano, que não pode ser obrigado por nenhuma força externa. Confisque os bens dos homens, aprisione e torture seu corpo; tais castigos serão em vão, se se esperar que eles o façam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas”.

Segundo o filósofo inglês, ainda que o poder civil fosse capaz de converter os homens à religião, isto em nada contribuiria para a salvação destes. Ocorre que as diferentes autoridades que representam o poder civil adotam diferentes religiões, embora o mesmo Deus. Ora, Deus está além das nações e territórios delimitados e dominados pela autoridade civil. A presunção desta em cuidar e salvar as almas, conforme o seu entendimento de Deus, “salientaria o absurdo e a inadequação de Deus, pois os homens deveriam sua felicidade eterna ou miséria simplesmente ao acidente de seu nascimento”. Locke conclui, portanto, que “todo o poder do governo civil diz respeito apenas aos bens civis dos homens, está confinado para cuidar das coisas deste mundo, e absolutamente nada tem a ver com o outro mundo”. (Id.: 06).

Locke passa então a argumentar sobre as características da Igreja, definida como uma “sociedade de homens livres, reunidos entre si por iniciativa própria para o culto público de Deus”. (Id.) Com a interpretação dos dogmas e da doutrina pelos homens difere no tempo e no espaço, é necessário que desenvolvam uma tolerância mútua. Nenhum indivíduo tem o direito de atacar ou prejudicar outrem porque este professa uma religião diferente. “Todos os direitos que lhe pertencem como indivíduo, ou como cidadão, são invioláveis e devem ser-lhes preservados. Deve-se evitar toda violência e injúria, seja ele cristão ou pagão”, escreve Locke. (Id.: 09) A despeito destas palavras, os homens continuaram a se matarem, a perseguirem e a destituir os bens dos outros pelo simples e absurdo argumento de que estes professavam outra religião. A história do povo judeu é ilustrativa do quanto a intolerância religiosa, aliada a fatores econômicos, sociais e políticos, pode ser prejudicial.

Não obstante a defesa da tolerância, Locke advogou a necessidade de restringir a tolerância. Para ele “não devem ser toleradas pelo magistrado quaisquer doutrinas incompatíveis com a sociedade humana e contrária aos bons costumes que são necessários para a preservação da sociedade civil”. O poder civil não deve tolerar, ainda, os

“que atribuem para si mesmos a crença, a religião e a ortodoxia, e em assuntos civis se atribuem qualquer privilégio ou poder acima de outros mortais; ou que sob pretexto da religião reivindicam qualquer espécie de autoridade sobre os homens que não pertencem à sua comunidade eclesiástica, ou os que de certo modo estão separados dela, a estes, digo, não cabe qualquer direito a ser tolerado pelo magistrado, nem tampouco aqueles que recusam ensinar que os dissidentes de sua própria religião devem ser tolerados”. (Id: 22-23)

Por que o poder civil não pode transigir? Locke argumenta que os defensores de tais doutrinas advogam a tolerância numa perspectiva instrumentalista, isto é, enquanto expediente para se fortalecerem e, quando considerarem necessário, atacarem “as leis da comunidade, a liberdade e propriedade dos cidadãos”. Portanto, não cabe aos mesmos o direito de serem tolerados. Por fim, o filósofo da tolerância nega igualmente esta prerrogativa aos ateus.“Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados”, afirma. Eis a sua argumentação:

“As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda religião não pode, baseado na religião, reivindicar para si mesma o privilégio de tolerância. Quanto às outras opiniões práticas, embora não isentas de erros, se não tendem a estabelecer domínio sobre outrem, ou impunidade civil para as igrejas que as ensinam, não pode haver motivos para que não devam ser toleradas”. (Id.: 23-24)

Independente de concordarmos com os seus argumentos, devemos admitir que John Locke desvenda a complexa relação tolerância-intolerância. Observemos que mesmo um pensador liberal não toma a tolerância de um ponto de vista puro e abstrato. A tolerância tem limites os quais, ultrapassados, colocam em risco as relações humanas e a própria convivência na sociedade. É absurdo, por exemplo, se falar em tolerância quanto se advoga idéias racistas. Em situações como esta, a tolerância deve dar lugar à intransigência. Devemos ter em conta o alerta de que, em várias situações, “as teorias e práticas predominantes de tolerância” expressam, “em graus variáveis, máscaras hipócritas a ocultar aterradoras realidades políticas”. (WOLFF, MOORE JR e MARCUSE: 1970: 10)

Razão e irracionalidade
Como nota Sergio Paulo Rouanet (2003), a intolerância é “uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções”. Trata-se de uma forma de pensar e agir que “se atualiza em manifestações múltiplas, de caráter religioso, nacional, racial, étnico e outros”. A história das sociedades humanas até o presente é uma história de permanente intolerância. É claro que em meio à crueldade e barbárie resultante de intolerâncias mútuas, há sopros de convivência pacífica fundada no respeito e tolerância. Contudo, como escreve Umberto Eco (2003: 193), “é como se nos dois últimos séculos, e ainda antes, esse nosso mundo tivesse sido percorrido por sopros de intolerância, esperança e desespero, todos juntos”. Observemos que o autor se refere ao século XIV – no qual contextualiza o seu célebre romance O Nome da Rosa. Porém, estas palavras permanecem válidas em nosso presente e, em especialmente, se retornarmos no tempo e no espaço histórico.

Se a história nos fornece exemplos da irracionalidade que nutre os barbarismo que envergonham as gerações posteriores, ela também oferece modelos de resistência e de tolerância. A literatura, por sua vez, também expressa uma enorme contribuição. Mais do que os tratados filosóficos, sociológicos etc., a literatura tem a vantagem de trabalhar sobre a matéria bruta, os personagens criados em toda a sua plenitude e fragilidade que caracterizam o humano. Nestes, o racional e o irracional mesclam-se em atitudes e contextos que ilustram as nossas contradições e dilemas. A literatura contribui ainda para a compreensão dos contextos históricos e também para uma análise sociológica, política e filosófica dos caminhos percorridos por nossos ancestrais e dos desafios que temos diante da nossa geração e das que virão.

Tomemos o romance de Umberto Eco: este traduz as lutas internas na Igreja Católica, em torno de questões aparentemente bizantinas, mas que expressam na essência o problema do poder sobre a instituição, a sociedade e os homens e mulheres. Esta luta por verdades que se tornem autorizadas e definitivas, indica a necessidade não apenas de suprimir outras verdades, mas também os seus portadores. Em outras palavras, a intolerância carrega em si a necessidade da eliminação física do oponente.

Dostoiévski percebeu esta dimensão. No limite, o inquisidor condenaria à fogueira o próprio Cristo. O clássico autor russo, em sua estupenda criatividade, imagina na fala do seu personagem, em Os Irmãos Karamázovi, como reagiriam os homens e mulheres e, principalmente a Igreja Católica Apostólica Romana, enquanto instituição, se Jesus Cristo ressurgisse. “Apareceu docemente, sem se fazer notar, e – coisa estranha – todos o reconheciam”, escreve. Ele retorna em meio à multidão, em frente à Catedral de Sevilha, no momento em que carregavam o caixão de uma criança de sete anos. “Se és tu, ressuscita minha filha”, diz-Lhe o sofrido pai. Cristo contempla-o cheio de compaixão e sua voz pronuncia docemente: “Talitha Kumi” – “Jovem, levanta-te”.[3] A criança ressuscita e multidão extasiada, chora e grita. Neste momento, diante dele surge o grande inquisidor:

“É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta o dedo e ordena aos guardas que prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho”. (DOSTOIÉVSKI, 1970: 187)

Cristo é preso, acusado de estorvar o trabalho da Santa Madre Igreja, feito em seu nome. E, em nome de Deus, muitos serão perseguidos, torturados e queimados. A heresia precisa sucumbir às chamas junto com o próprio herege. Em outras épocas, braços armados substituirão as labaredas, e corpos e mentes hereges foram encarcerados, até que, executados, se extingam no tempo e espaço. Os regimes totalitários aperfeiçoaram este mecanismo macabro. George Orwell, em 1984, percebeu o significado da nova inquisição. Como analisado em “A impotência da argumentação racional (ou quando 2+2=5)”, não se trata mais de destruir a vítima ou arranca-lhe a confissão que o salve – se não o corpo, pelo menos a alma. “Não apenas destruímos nossos inimigos; nós os modificamos. Compreendes o que quero dizer?”, afirma o torturador à vítima. Isto significa que não basta arrepender-se ou acatar a verdade instituída: é preciso estar convicto, introjetar os ensinamentos da doutrina, render-se por “livre e espontânea vontade”. Trata-se de convencer-se de que a realidade não existe fora do âmbito do pensamento único ditado pelo Partido. E, se este afirma que 2+2 resulta em cinco, é preciso aceitar tal verdade.[4]

O dogma do partido e do Estado é racionalizado. Não se trata mais do ódio subjetivo, mas de um ódio fundado na razão e instrumentalizado: o fanático e sectário manifesta sua intolerância como se esta fosse uma necessidade racional, em prol de objetivos humanitários, não raras vezes, fundamentado num discurso justificador das atrocidades cometidas em nome da humanidade ou dos oprimidos.

A intolerância ultrapassa, portanto, os limites da irracionalidade. Não se pode acusar o dogmático de agir apenas motivado pelos sentimentos; quando se trata de guerras ideológicas, há que se considerar o que se poderia denominar como a Razão do Estado incorporada pelos indivíduos que agem em seu nome. Não raro, atitudes bárbaras encontram justificativas e defensores racionais. Novamente, a metáfora do grande inquisidor, nos ajuda a compreender:

“... queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão”. (DOSTOIÉVSKI, 1970: 189)

Os homens e mulheres preferem o pão (segurança) à liberdade. Eis o argumento do grande inquisidor. O ser humano está disposto a sacrificar a liberdade em nome da segurança, e, para que esta prevaleça, aceita todos os meios – ainda que estes contradigam a própria noção de civilização do mundo ocidental. Os eventos posteriores ao 11 de setembro de 2001 e os recentes episódios envolvendo militares norte-americanos em sessões de tortura no Iraque, comprovam-no.

A intolerância, portanto, tem um fundamento irracional, mas também racional. Em nome da segurança, o homem aceita racionalmente a intolerância do Estado contra outros povos e culturas – tomados em geral como um todo homogêneo que ameaça a ordem interna. Por outro lado, os indivíduos, organizados na chamada sociedade civil, podem impor leis e normas que impeçam ou limitem as manifestações de intolerância institucionalizada.

Mas seria ingênuo debitarmos a intolerância à capacidade do Estado e das classes dirigentes em manipular o povo simples para a defesa de interesses econômicos e políticos particularistas. É certo que as desavenças em torno da fé também atendiam aos objetivos do poder político e das classes dirigentes, mas a verdade é que isto só se torna possível porque os indivíduos internalizam a aversão e ódio ao outro, ao que pensa ou manifesta sua fé de maneira diferente da dele. A intolerância está enraizada em nosso ser, introjetada em nossa mente. Ela se manifesta tanto nas grandes questões que envolvem disputa políticas e territoriais, guerra entre deuses etc., mas também em nossos costumes e na forma como encaramos o diferente.

Victor Hugo, em Os Trabalhadores do Mar, nos dá um exemplo de intolerância fundada nos costumes e na resistência conservadora das velhas gerações em relação ao que se apresenta como novo. Seu personagem principal, Gilliatt, tem a antipatia da comunidade simplesmente porque não compartilha dos seus preceitos e tinha um modo de vida considerado estranho. Mas há também o preconceito em relação ao desenvolvimento industrial, isto é, o aparecimento do navio a vapor. Comentando a reação dos pescadores, o autor, com fina ironia, escreve:

“A esses bons pescadores de então, outrora católicos, agora calvinistas e sempre beatos, pareceu-lhes aquilo o inferno flutuante. Um pregador da terra tratou da questão: “Temos nós o direito de fazer trabalhar juntos o fogo e a água que Deus separou?” Aquele animal de ferro e fogo não era a imagem de leviatã? Não era isso refazer o homem, a seu modo, o primitivo caos?”. (HUGO, 2003: 59)

A máquina foi assemelhada a uma criatura daquele cujo nome é impronunciável. Aqui Victor Hugo reafirma um dos fundamentos do preconceito e da intolerância: a insegurança e o medo. “Os habitantes simplórios das costas e dos campos aderiam à reprovação pelo incômodo que lhes causava a novidade”, afirma. A máquina assusta o camponês, mete-lhe medo. (Id.: 60) Por trás da resistência ao novo e do medo, havia na verdade uma disputa de cunho econômico: a máquina permitia um melhor transporte da carga, com maior rapidez e garantindo sua preservação. Portanto, potencializava-se os lucros e, por conseguinte, os prejuízos dos que não dominavam esta tecnologia:

“Todos os proprietários de navios de carreira entre a ilha guernesiana e a costa francesa clamaram imediatamente. Denunciaram aquele atentado feito às Santas Escrituras e ao monopólio. Alguns templos fulminaram. Um reverendo, por nome Elihu, chamou ao vapor uma libertinagem. O barco à vela foi declarado ortodoxo. Viu-se distintamente que eram pontas do diabo as pontas dos bois que o vapor trazia e desembarcava. Durou o protesto um bom par de dias”. (Id.: 63)

Com o tempo, começaram a perceber as vantagens econômicas propiciados por esta máquina demoníaca. Os espíritos conservadores arrefeceram-se e alguns arriscaram-se a adotar o Devil-Boat. A necessidade econômica, da mesma forma que alimentou o preconceito e a intolerância, forneceu os elementos para a sua superação. Como em outras conjunturas históricas, o fator econômico foi precisamente o sustentáculo da intolerância – pelo menos até que esgotasse as suas potencialidades velhas e desse lugar ao latente, o novo.

Concluindo...

Estas são questões presentes em nossa época e que demonstram a complexidade do tema – tanto é que a lei civil trata de proteger os indivíduos e coletividades em relação aos abusos da liberdade de expressão. John Locke nos faz ver que o combate à intolerância exige uma atitude de tolerância, mas também de intolerância – quando esta se faz necessário. Mas, quem decide quando este ou aquele indivíduo, esta ou aquela religião, esta ou aquela coletividade, não pode ser tolerada? Numa sociedade onde os interesses se contrapõem e se antagonizam, quem interpreta, por exemplo, quais são os “bons costumes” e o que é prejudicial aos mesmos?

Afinal, quais as restrições à tolerância? Mesmo o mais ferrenho defensor da liberdade de expressão pode se ver diante de circunstâncias que a questione. Por exemplo, é possível tolerar a liberdade de expressão quando esta ataca a religião e os bons costumes? Imaginando uma sociedade democrática, é possível tolerar a liberdade de expressão para aqueles que colocam em risco a democracia? Podemos, em nome da tolerância, admitir a livre expressão de literatura de cunho racista e preconceituoso? É possível tolerar culturas que cometem atentados aos direitos humanos em nome do respeito ao multiculturalismo?

No século XVIII, Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, se perguntava: “O que é a intolerância?” E, respondia: É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza”. Há muito que a humanidade padece deste mal. O preconceito religioso, étnico, político, cultural, ou seja, a incapacidade humana em se reconhecer no “outro” e respeitá-lo é, sem sombra de dúvidas, um fator essencial gerador da intolerância. Mas seria insuficiente tentar encontrar respostas para a intolerância apenas nestes fatores. É preciso considerar as formações societárias específicas, os contextos históricos diferenciados. Constantemente, o preconceito e a intolerância são estimulados por motivos essencialmente econômicos. Por exemplo, a sociedade escravagista necessita desenvolver uma teoria justificadora da pretensa superioridade racial dos brancos para impor a estrutura econômica produtiva fundada no trabalho escravo. No entanto, o fator econômico não esgota a questão. Até mesmo fatores de ordem psíquica devem ser levados em conta. Neste processo, a Educação cumpre um papel fundamental, seja no sentido de contribuir para a introjeção do preconceito e, assim, fortalecer atitudes intolerantes; seja para construir uma sociedade sem espaço para o preconceito, com respeito mútuo entre os diferentes.

As sociedades humanas passaram por transformações substanciais, mas estas não extinguiram o preconceito nem a intolerância. O projeto iluminista fundado na crença da razão enquanto fator de progresso humano fracassou. O século XX gerou barbáries como o holocausto e as guerras “em nome de Deus” permanecem atuais. No mundo globalizado pós-11 de setembro, o preconceito e a intolerância se funda em novas formas e procura se legitimar por um discurso ocidental, estimulado pelo Império, cujas conseqüências imediatas é a criminalização de qualquer crítica à sua hegemonia, a qualificação indiscriminada de “terrorista” e as restrições às liberdades individuais e à própria democracia, em nome da segurança. As potências atuais resgatam o grande Leviatã e, na “guerra de todos contra todos”, todos somos suspeitos em potenciais. Neste contexto, os movimentos de migrações humanas, os inúmeros campos de refugiados espalhados pelo mundo, potencializam uma realidade explosiva: a crise econômica capitalista, a concorrência pelo emprego, o aumento da desigualdade social, a convivência entre diferentes culturas etc. Estes elementos geram um campo minado no qual as atitudes os preconceitos e intolerância ganham audiência e teorias legitimadoras.

No Brasil, não é diferente. Impactado pelas transformações em âmbito mundial, carregamos ainda a triste realidade de uma dívida social, herança da nossa formação histórica e das políticas econômicas adotadas pelos diferentes governos. À desigualdade social que grassa em nossa sociedade, soma-se a discriminação racial e o preconceito de classe. Não se trata de repetir estatísticas, por demais conhecidas. Convivemos com as injustiças sociais e raciais, as quais são até transformadas em obras cinematográficas de sucesso (de certa forma, até a miséria se transforma em objeto de consumo e também fonte de renda). O abismo da desigualdade social se amplia e as esperanças são renovadas a cada governo. Em tais condições, o preconceito e a intolerância, aberto ou dissimulado, tende também a perdurar. Este se faz presente em todos os espaços: no trabalho, nas escolas, nas universidades, nos meios de comunicação em geral, etc. Contribuir para transformar esta realidade é também um compromisso dos intelectuais com responsabilidade social diante do mundo em que vive, com o seu país e com os que econômica e culturalmente desfavorecidos.

À intolerância religiosa soma-se a intolerância política, cultural, étnica e sexual. A inquisição está presente no cotidiano dos indivíduos: no âmbito do espaço domestico, nos locais do trabalho, nos espaços públicos e privados. Ela assume formas sutis de violência simbólica e manifestações extremadas de ódio, envolvendo todas as esferas das relações humanas. A intolerância é, portanto, uma das formas de opressão de indivíduos em geral fragilizados por sua condição econômica, cultural, étnica, sexual e até mesmo por fatores etários. Muitas vezes nos surpreendemos ao descobrir a nossa própria intolerância.

A construção de uma sociedade fundada em valores que fortaleçam a tolerância mútua  exige o estudo das formas de intolerância e das suas manifestações concretas, aliado à denúncia e combate a todos os tipos de intolerância. Por outro lado, a tolerância pressupõe a intransigência diante das formas de intolerância e fundamenta-se numa concepção que não restringe o problema da tolerância/intolerância ao âmbito do indivíduo; esta é também uma questão social, econômica, política e de classe.


Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo.

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